Um ano após a tragédia, um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) revela o impacto profundo das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul entre abril e maio de 2024. Até hoje, milhares de famílias ainda não foram reassentadas, enquanto dezenas de outras vivem em abrigos temporários ou moradias improvisadas.
As enchentes extremas atingiram centenas de cidades gaúchas, deixando um saldo devastador: cerca de 200 mortos, mais de 500 mil pessoas deslocadas, bairros inteiros destruídos e inúmeros negócios fechados. A reconstrução avança lentamente, enquanto a população lida com o trauma coletivo. Segundo a CIDH, a crise climática não apenas provocou destruição, mas também escancarou um novo mapa de vulnerabilidades estruturais, cenário que vem se repetindo com frequência crescente na América Latina.
Em seu primeiro relatório dedicado a uma tragédia climática, a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca) visitou diversas comunidades no Rio Grande do Sul para avaliar os impactos. O documento aponta que as decisões políticas locais, aliadas à degradação ambiental gradual, aprofundaram desigualdades já existentes e deixaram milhares de pessoas desassistidas.
“A tragédia climática no Rio Grande do Sul teve uma magnitude muito grande”, afirma Javier Palummo, relator especial da CIDH. “Embora os esforços do Estado brasileiro para articular respostas tenham sido significativos, o acúmulo de degradação ambiental, a redução da proteção ao bioma da Pampa e a pressão do modelo de expansão agropecuária pavimentaram o caminho para um desastre sem precedentes.”
Mais de dois terços dos municípios gaúchos foram afetados. Em áreas rurais, cerca de 206 mil propriedades sofreram danos, e, nas cidades mais atingidas, entre 84% e 92% dos empregos foram comprometidos. Pelo menos 16 mil indígenas também foram diretamente impactados.
As consequências, porém, não foram iguais para todos. O relatório destaca o “racismo ambiental” na exposição desproporcional de comunidades negras, quilombolas e indígenas aos riscos socioambientais. As entrevistas revelaram relatos de mulheres liderando comitês de emergência em abrigos precários, trabalhadores informais sem apoio, agricultores familiares isolados e pessoas com deficiência ou doenças crônicas vivendo em condições precárias.
“Pessoas que antes não estavam no radar das políticas de assistência social passaram a ser incluídas do dia para a noite, por terem perdido tudo”, explica Palummo. “Os riscos climáticos estão criando novas formas de vulnerabilidade, exigindo que os Estados repensem como oferecer proteção social.”
Em Porto Alegre, Pelotas e outras cidades, escolas foram transformadas em abrigos improvisados. Nesses locais, foram documentadas situações de violência sexual contra mulheres e meninas, além de condições de saúde precárias. Segundo o relatório, o Protocolo Nacional de Proteção Integral, em vigor no Brasil desde 2013, não foi plenamente aplicado. Apesar disso, autoridades afirmam que as denúncias foram investigadas, resultando em prisões.
A situação das crianças também foi crítica. Estima-se que mais de 10 mil menores tenham sido acolhidos em abrigos temporários, com rotina escolar interrompida e necessidade de reinserção em outras escolas após o fim das chuvas.
A saúde mental é outro ponto central: 42% das pessoas entrevistadas pela Redesca apresentaram sintomas de estresse pós-traumático. “Os impactos emocionais dessa tragédia vão permanecer por muito tempo”, alerta Palummo.
Resposta lenta e ineficiente
Além das consequências imediatas, o relatório também questiona a prevenção. Em Porto Alegre, falhas em diques e estações de bombeamento foram determinantes: foram identificadas ao menos sete falhas críticas. O sistema de alerta, essencial para evacuação, não funcionou eficazmente, especialmente nas periferias.
Estudo recente da Agência Nacional de Águas (ANA), em parceria com universidades federais e o Serviço Geológico do Brasil, mostra que eventos como o de 2024, antes raros, podem se tornar cinco vezes mais frequentes, ocorrendo a cada dez anos. Projeções indicam aumento de até 20% nas cheias dos rios gaúchos, com níveis de água que podem superar em um metro as barreiras de proteção atuais. Em muitas comunidades, obras de contenção ainda não foram licitadas, restando à população apenas torcer para que novas chuvas não repitam a tragédia.
Até o momento, o governo destinou R$ 89 bilhões à reconstrução — cerca de 80% do valor total previsto. No entanto, um ano após a catástrofe, milhares de famílias seguem sem reassentamento definitivo e criticam a falta de participação nas decisões de reurbanização.
“É preciso reconhecer as desigualdades históricas e estruturais que determinam quem sobrevive, quem espera e quem nunca é ouvido”, afirma Palummo.
Apresentado nesta segunda-feira em um evento organizado pelas comunidades afetadas em Porto Alegre, o relatório enfatiza a necessidade de uma resposta estatal ativa, com políticas que considerem o impacto diferenciado nas populações mais vulneráveis.
Carrasco, Jorge. “As históricas inundações no sul do Brasil ‘criaram novas formas de vulnerabilidade’.” El País Brasil. Publicado em 3 de maio de 2025.
Link: El País Brasil — Las históricas inundaciones del sur de Brasil
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